Perdidos no Tempo - Capítulo 6: "Ele falou:"

quarta-feira, novembro 25, 2015

                  Ela atravessou a rua nervosa, quase displicente. Apenas o destino não quis que algum carro distraído a impedisse de chegar a seu destino. Subiu trôpega os três lances de escada que levavam a seu apartamento. Buscou as chaves em sua bolsa, mais com o tato que com o olhar. Amaldiçoou mais uma vez, ao abrir a porta, o filho da puta que colocara o interruptor da luz no local errado. Ela morava há dez, quinze anos ali e nunca se acostumara com aquele maldito interruptor! Foco!
                 Andou apressada até seu quarto, largando os sapatos pelo meio do caminho. Abriu o guarda roupas, afastando os cabides para os lados. Apertou um botão que estava tão disfarçado que ela demorou alguns segundos tateando até encontrar. Uma voz grave e rouca cumprimentou. Dr. Helen, ofegante, somente conseguiu dizer: “Ele falou”.


Alô, Vó, é o Pedro.
Não, Vó, tô ligando que eu não vou poder pegar Sófi. Aconte...
Não, Vó, tudo bem, é que...
Vó, dá pra me escutar?
Vó!
Ó, tô no trabalho.
É, Vó, no hospício, isso. Escuta. Não vou buscar a Sofia.
Eu sei que a senhora tem...
Sei, Vó.
Manda ela voltar de táxi. Depois eu pago a senhora.
Não, tá tudo bem. É só aquele paciente meu, lembra? O homem nu?
Ele falou.



                    No escuro ele sempre se sentia melhor. Seus olhos já viram muito nesta vida. E em outras tantas vidas que ele viveu pensando que eram dele. Seu corpo estava cansado, sua voz rouca e suas pernas fracas. Preferia o escuro. Sua mente ainda funcionava perfeitamente. Ou mais. Séculos de conhecimento bailavam em seus neurônios. E ele pensava melhor no escuro.
                   Havia feito mais uma vez. Havia mandado mais um... soldado? Mensageiro? Peão!
Havia mandado mais um peão fazer seu trabalho sujo. Seu! E mesmo assim o trabalho ainda era seu. Depois de tantos anos mexendo no tecido temporal, era de se admirar que ele, o ele velho e barbudo, também não enlouquecera. Ou será que...? Não. A maneira mais rápida de pirar de vez é começar a brincar de what if. Ainda mais nesse trabalho.
                  No escuro, recostado confortavelmente na velha cadeira forrada de couro branco, de espaldar alto, devaneando, especulando, viajando dentro do complexo mundo no qual sua mente se tornara, o que ele menos queria era ouvir aquele zumbido. Aquele maldito zumbido do comunicador.
                  Ergueu o braço lentamente e, com um indicador longo e fino, apertou o botão de recepção. Falou qualquer coisa. Por falar. Sentiu a voz sair difícil e pastosa.
                  Do outro lado veio aquela voz que ele detestava, mas que tinha que aturar. Ela era um daqueles agentes que não sabem nem um décimo do que a Empresa faz, mas se acha mais importante que o filho do rei. Ele detestava esse tipo de gente.
                 Apertou o botão, falou qualquer coisa e ouviu duas palavras que o fizeram arrepiar:

                - Ele falou.

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