Perdidos no tempo – Capítulo 3: “Isca e anzol”

quinta-feira, outubro 15, 2015

- Por aqui, venha. - disse-lhe uma voz atrás de si no interminável corredor branco.

Nunca tinha andado tanto atrás de um trabalho. Mais que um trabalho, tinha se transformado em sua obsessão nos últimos dias. Talvez descobrir mais sobre tudo o que se passava naquele prédio valesse a pena tantos papéis preenchidos e tantas entrevistas anteriores. Deveria ser assim mesmo o processo normal de uma seleção. Afinal, tinha sido convidado. Nunca tinha passado por uma, nunca tinha querido passar por uma, mas tudo aquilo o intrigava. Desde que viu aquela cena, tudo parecia ainda mais estranho. Um homem nú, um hospício... O que significava tudo aquilo? O que eles estavam preparando para ele agora? Parecia uma brincadeira de mau gosto ou então uma grande oportunidade de, enfim, mostrar que poderia colocar em prática tudo o que aprendera na graduação.

- Venha, sente-se. Logo logo Ele virá falar contigo. - disse-lhe uma loira belíssima em seu vestido branco. Aliás, como era branco! E como tudo era branco ali. Sem quadros, sem móveis, apenas duas cadeiras. Estranho... - Sente-se aqui, aqui estão seus pertences. - Agora percebeu que havia uma caixa branca sobre a cadeira. Sentou-se e colocou-a no colo, sem muita curiosidade.

Durante suas aulas, seu desapego tinha sido perturbador para a maioria dos colegas. Parecia não ligar para o que lhe era ensinado. Tinha sido convidado... E isso o intrigava demais. Nunca tinha estudado, nunca tinha se preocupado em acertar nada nas provas e ainda assim era laureado com méritos em todas as matérias. Mesmo seu hobby em fotografia tinha sido estimulado pelos colegas e professores, mas por que? A única coisa que o tirou do eixo foi aquele homem nú que havia visto. Parecia tanto com alguém que conhecia. Os ombros, os braços, o jeito... tudo lhe lembrava alguém próximo. Mas quem? E por que havia recebido aquele vídeo junto com este convite?

- Olá! Dia bonito faz hoje, não? - disse-lhe o homem de longa barba e bengala que atravessava a sala em direção à outra cadeira, lhe cortando o raciocínio. - Está se sentindo bem hoje?

- Acho que sim, mas não vi o dia. Só vejo branco.

- Como sempre, espirituoso. As mentes espirituosas são as melhores. - e o senhor sentou-se sem muita dificuldade. - Veio aqui por causa do que viu, não? O homem que não pode mudar o passado.

- Como sabe? - assustou-se.

- Ele só repete isso. Sei que veio não só para conhecê-lo, mas também para tentar resgatá-lo. Cada um que vem aqui tem um resgate a fazer. Cada um tem seu personagem preferido. - e riu.

- Tudo bem. - intrigado.

- Ainda não sabe, mas irá descobrir. - apontando para a caixa. - Abriu?

- Não, não deu tempo.

- Em breve, terá tempo para tudo e tudo terá seu tempo. - disse, rindo. - Abra, por favor.

- O que é isso? - disse, observando alguns artefatos antigos dentro da caixa, agora aberta.

- Um bom trabalho de arte. Parece-lhe um relógio de pulso e uma câmera fotográfica?

- Não sei, senhor. Não conheço esses tipos.

- Irá se acostumar. Vamos, coloque. - ao conselho do velho, o jovem colocou o relógio no pulso e a câmera no pescoço. - Se quer conhecer o homem, em breve dirá que o conhece tão bem que fará parte de si e você, dele. Muito em breve. Como aprendeu na sua graduação, o tempo é relativo e as impressões é que mudam. Lembra da Psicologia ? Aqui precisamos de impressões nítidas, sem a carga emotiva e psicológica acumulada pelo tempo. Precisamos de impressões reais, sem nostalgia. Para isto a câmera. E quando voltar, terá algumas respostas.

- Voltar? Pra aonde vou? Vou fotografar?

- Sim, mas não só isso, digamos que agora seja apenas um estágio.

- E o relógio?

- Ele lhe levará. Ele lhe acompanhará. Se estiver em perigo, ele lhe trará de volta. Se estiver prestes a quebrar as regras, ele lhe trará de volta.

- Regras? O senhor não falou nada sobre regras.

- São só duas. Lembre-se: registrar tudo e nunca alterar o passado!

- Devo registrar tudo. Não devo alterar o passado.

- Isso! Vai dar certo. Você foi bem escolhido. - o senhor se levantou e o fitou com profundos olhos azuis. - O que não se importava.

- A câmera... - intimidado.

- Você terá tempo para aprender a usar, mas continue repetindo. - se dirigindo ao fundo da sala.

- Devo registrar tudo. Não devo alterar o passado. Devo registrar tudo. Não devo alterar o ... - sua cabeça rodou, sentiu uma vertigem, uma sensação de queda e estava em outro lugar, aberto, com o sol ainda frio, uma cidade estranha. - passado!

Pessoas com olhos rasgados andavam pelas ruas, desconfiadas, olhando para o céu de vez em quando e ainda sem notar sua presença quando o artefato soou em seu pulso, junto com uma sirene forte que se espalhou pela cidade. A tela do artefato havia mudado, dizia: Hiroshima, 06 de agosto de 1945, 07:09 a.m., 1h06min18seg para o fim da missão. E iniciou-se um cronômetro regressivo. Todos corriam pelas ruas, escondendo-se em locais abaixo da superfície. Não sabia bem o que era tudo aquilo, mas era hora de trabalhar, registrando tudo e sem alterar o passado.

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