Perdidos no Tempo - Capítulo 9: “Au Revoir, Monsieur Langi”

terça-feira, janeiro 26, 2016

O Tempo estava cada vez mais pesado.

As nuvens carregadas eram refletidas na superfície aquosa do Rio Sena. A garota de olhos azuis e cabelos dourados corria para dentro do coração do Quartier Latin. O passo apressado e o olhar firme e direto conduziam seu corpo atlético entre as cadeiras dos bares esparramados pela calçada do bairro mais latino de Paris.

Para uma menina que passara dezesseis dos seus 23 anos morando na capital francesa, especificamente atravessando aquela exata rua mais de uma vez por dia, era de se esperar a indiferença em relação àqueles homens de meia idade que brindavam o balançar de suas pernas. O fato, é que não estavam provocando uma moçoila qualquer, aquela era Lili, e, conhecendo Lili do jeito que aqueles homens de meia idade sentados em frente ao La Ronde conheciam, sabiam que algo de errado estava acontecendo.

Em um dia normal, Lili teria jogado uma pedra na cabeça de um deles.

Ela dobrou a segunda esquina e, sem sequer precisar ler a placa que sinalizaria a localização da loja de penhores do Monsieur Langi, entrou como um rompante pela porta do estabelecimento do seu tio.

- Ils s’arrivent!


Phillipe Langi, um senhor que, pelo longo bigode branco e pele enrugada já anunciava sua chegada aos setenta, olhou fixamente para os olhos de Lili como se já esperasse por dias a desesperadora notícia que ouvira.

Langi pegou rapidamente a bússola que seu cliente estudava atentamente. Era um souvenir que aquele homem queria levar para sua volta ao Brasil. Era um homem que parecia se interessar profundamente por alguns dos objetos à venda naquele estabelecimento.

- Eu gosto das histórias contidas neles – Disse o cliente 42 segundos antes de Lili arrebentar a porta com sua delicadeza.

Langi finalmente rompeu o olhar fixo em Lili para pousá-lo nos olhos de seu cliente.

- Ferme la porte.

Rapidamente, Lili fechou as trancas de baixo e de cima da porta antes de correr para as janelas. Sua velocidade não foi alta o suficiente para que homens de uniformes verdes e faixas vermelhas que corriam em direção à loja não conseguissem ver sua imagem pela vidraça da loja enquanto juntava rapidamente as pesadas cortinas de brim. O cliente, sem conseguir entender as agressivas palavras proferidas em alemão do lado de fora da loja, pareceu confuso no primeiro momento, e logo tirou um objeto de sua bolsa de couro lateral para se defender.

Lili girou sua cabeça mais rápido do que o próprio corpo para ver o que o homem tirava de sua bolsa. Sabia o exato objeto que ele tiraria ali de dentro, e, com certeza, não haveria momento mais inconveniente para aquele rapaz sabotar seu próprio disfarce. Langi pensou a mesma coisa.

- Tire esse homem daqui! – Disse o senhor em português perfeito.

As batidas começaram. Os homens de uniforme entrariam a qualquer momento.

- Não, não… Não me tirem daqui, por favor!

Mesmo não sendo judeu, a probabilidade de se dar mal ao ser jogado nos braços daquele agrupamento nazista não pareciam interessantes. Naquele momento, aquele viajante do tempo era como um leitor que conhecia o final do livro, mas em determinado momento se questiona sobre as pequenas ações e peripécias embutidas em seu desenvolvimento. E quando aquele leitor se percebe como personagem, um personagem em perigo mortal, ali sim, ele teria que agir.

- Não me envolvam nessa história! – Disse o Homem do Tempo tirando de vez sua câmera da mochila como se pudesse se defender com ela.

Langi, ignorando o gesto patético de seu cliente, chegou perto do seu ouvido com uma calma incoerente àquela necessária na situação atual.

- Eles estão aqui por você.

Lili olhou incrédula para os dois. Ela sabia que esse dia iria chegar. Sabia como o incidente iria acontecer. Estava embaixo do seu nariz. Prendeu uma lágrima entre os olhos e sua pálpebra para não deixá-la escorrer até a sua bochecha e tornar real o acontecimento que seu tio havia lhe previsto três anos atrás.

Até a grossura daquela porta não aguentaria muito mais tempo. Era questão de segundos até os homens de uniforme perceberem que tudo poderia ser resolvido com meia dúzia de tiros de fuzil.

Lili correu para abraçar o senhor Langi que a impediu com um leve gesto sutil com a mão esquerda, exibindo o anel da mesma ordem que o colocara naquela situação limítrofe.

- Você vai ter tempo para isso.

- O Dia da Rosa? – Perguntou Lili

- Corra e leve esse homem com você imediatamente.


E foi pela própria alça da bolsa que Lili puxou o homem do tempo para o corredor que levava ao fundo.

- Ei! E ele? – Perguntou o homem enquanto era arremessado na parede lateral do fundo da loja enquanto Lili procurava a chave que abriria a porta.

Nenhuma resposta.

Ao meio do barulho de chaves e batidas, o homem avistara o Monsieur Langi enfiando a mão no fundo falso do balcão.

- Quem ele é?

- Ele é o homem que salvou sua vida três vezes.

A chave certa na mão de Lili fez a porta se abrir rapidamente e a claridade discrepante com a do interior da loja fez cegar os olhos do homem que a seguia. Olhou de volta para dentro da casa para aliviar a dor. Foi tempo o suficiente para ver a granada posicionada na mão esquerda daquele senhor.

- Para onde estamos indo? – Disse o homem enquanto corriam.

E pela primeira vez, Lili olhou diretamente para os olhos do viajante, como se o erro estivesse na própria pergunta que ele fizera.

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